domingo, 14 de setembro de 2008

AS GOTAS AZUIS DA ANGÚSTIA

Nunca houvera nada de anormal com ele. Era um rapaz como todos os outros. E, na escola, onde o caso começou, era um aluno estudioso, raramente ticava em recuperação nos finais dos bimestres. Ninguém poderia supor que aquilo lhe acontecesse.
Tudo começara num dia em que, na escola, houvera prova de matemática. Já havia terminado a prova quando uma menina, uma bela adolescente por quem tinha especial interesse, sussurrou-lhe pedindo que escrevesse-lhe num pedaço de papel as respostas do teste e lhe passasse quando o professor não estivesse olhando. Ele prontamente pôs-se a executar a tarefa, pois jamais perderia chance de ajudar aquela menina com a qual sonhava constantemente. No entanto, quando já estava terminando de redigir a “cola”, notou que o professor o observava e apavorou-se. Tentou disfarçar, fingindo que refazia os cálculos, porem notava que o professor não lhe tirava os olhos. A menina, há esse tempo, já insistia pela demora das respostas. E ele, não querendo decepcioná-la, não sabia o que fazer. Não poderia passar o papel com as soluções da prova sem que o professor não o visse. Sabia que seus sentimentos para com a menina talvez não fossem correspondidos, mas seus sonhos de adolescente incentivavam-lhe a agir como cavaleiro sentimentalóide. Assim sendo, perante a situação em que se encontrava, começou a desesperar-se ligeiramente. Foi quando notou que a tinta azul da caneta que estava usando era por demais forte, a ponto de atravessar as folhas que escrevera e reproduzir-se na carteira. Assim, toda a redação da prova e da “cola” haviam ficado escritas, em tinta legível, na carteira. E uma coisa que ele também notou foi que tudo que fora escrito com aquela caneta tomava um brilho fora do normal, como que iluminado por tochas, o que possibilitava que a “cola” sobre sua carteira fosse lida por qualquer um que estivesse ate mesmo do outro extremo da sala. E isso resolveria seu problema. E, aliviado com essa solução, nem atinou no que havia de fantástico no caso. Entregaria a “cola” juntamente com a prova ao professor, como se primeira fosse um rascunho de cálculos da ultima. E quanto a menina ao seu lado, esta poderia obter as respostas do teste olhando para as letras brilhantes em sua carteira. E, mesmo se o professor percebesse o fato, não poderia culpá-lo, pois alias ele não tinha realmente culpa de sua caneta ser anormal.
Com o pensamento arrumado dessa maneira, ele levantou-se e caminhou para a mesa do professor, levando consigo a prova e a cola. A menina, quando o viu erguer-se, sussurrou-lhe mais uma vez. Ao que ele, sorrindo, mostrou-lhe, com os olhos, sua carteira. Ela não entendeu, mas ele seguiu seu caminho confiante. Foi quando notou que a folha de sua prova, por demais carregada com a tinta anormal de sua caneta, derramava gotas azuis pelo caminho. Eram gotas grossas, que pegavam fogo pouco antes de chocarem com o assoalho. Ele assustou-se, e sem saber o que fazer, tentava esconder as gotas da vista dos colegas. “È ridículo” pensou “ as letras e os números da prova devem estar se derretendo, a prova vai borrar-se toda”. E ele alucinou-se. E começou a fazer uma serie de malabarismos, ponde-se ora a frente, ora atrás da prova, tentando ate esconder a prova dentro da camisa, o que despertou a atenção do professor que exclamou assustado:
- Ficou maluco!
Ele confuso, desajeitado, não soube o que responder. E colocou a prova rapidamente sobre a mesa do professor.
- Desculpe de estar tudo borrado_disse ele_, mas a caneta... _ continuou nervoso.
O professor apanhou a prova sobre a mesa, olha-a toda e cautelosamente e com a expressão de duvida, replicou:
- Mas não há nada borrado.
Nosso rapaz, no entanto, mirava nervosamente as mãos que pelo contato com a prova haviam ficado inundadas de tinta azul. E, quando o professor lhe dirigiu novamente a palavra, ele limitou-se a mostrar-lhe as mãos e a dizer:
- Foi a caneta... é...estourou!....e eu me sujei todo...
E o professor, olhando-lhe para as mãos, as quais traziam-se limpas, sem nenhum traço de tinta ou qualquer outra anormalidade, perguntou-lhe:
- Você bebeu?
O rapaz não soube o que responder. E, a essa altura, já toda a classe prestava atenção a cena, entre risos e cacoetes. Ele saiu da sala cabisbaixo, não entendendo como os outros não viram, não notaram os trechos de tinta, as gotas azuis. Sua duvida aumentou quando a menina que lhe pedira “cola” veio zangada dizer-lhe que ele não quisera ajudar-lhe. E, quando ele lhe falou das respostas em tintas brilhantes em sua carteira, ela riu-se e chamou-o de palhaço. Tentou provar-lhe, levando-a a examinar sua carteira e o assoalho onde ainda via as marcas das gotas de tinta que haviam jorrado. Mas ela nada enxergara. Chamou outras pessoas para comprovar-lhe, mas ninguém nada via. Somente ele enxergava as manchas de tinta azul.
E esta foi a primeira vez em que o caso sucedeu-se. A principio ele julgou que todos viam as manchas, mas que, por brincadeira, haviam resolvido encenar para fazer-lhe de trouxa. Os outros, por seu lado, julgavam que era ele quem brincava, querendo fazer-se de maluco. Mas com o tempo ele passou a ver gotas azuis caírem contastemente do teto ou jorrarem de vez em quando das torneiras, quando ele as abria. E logo, todos que julgavam que se tratava de uma brincadeira, admitiram seu engano e passaram a trata-lo como reservas, julgando-o muito doente, num grau bastante elevado de loucura. E passaram a olhar-lhe com pena e comiseração. E até seus familiares que riam quando ele dizia estar sendo perseguido por um filete de tintas, julgando ser brincadeira, passaram a ficar nervosos e já sua mãe dizia:
- Para com isso menino!
Quando o mal foi descoberto, não tardou a ser internado num hospital de sanidade mental.
E ele desesperou-se, tentando provar aos outros que suas tintas azuis existiam. Apanhou da caneta com que redigira a prova de matemática e mostrou-a a todos, pensando ter solucionado o caso. Porém, era uma caneta como outra qualquer e os outros o julgaram ainda mais louco. Ele próprio então, desesperado, destruiu a maldita caneta, com o intuito de livrar-se do que só poderia ser uma praga. Todavia, mesmo com a caneta não mais existente, ele continuou a ver as gotas azuis. Elas jorravam de todas as folhas que ele via. Não havia livro ou caderno que ele tocasse sem sair gritando, dizendo que suas mãos estavam molhadas de tinta azul. E ele que gostava de escrever poesias, não mais o fez devido ao trauma. E logo, as gotas que ele dissera ver cair uma ou outra vez do teto, passaram a jorrar com mais constância, formando verdadeiras cascatas pelas paredes. E não tardou a andar só de capa impermeável e guarda-chuva para proteger-se das gotas azuis. Mas isso de nada adiantou. E em seu quarto no hospital, todos os dias exatamente as seis horas da manha, hora que antigamente acordava para ir ao colégio, uma grande gota de tinta, do tamanho de um bujão de gás, caia do teto, quicava três vezes no chão, diante da sua cama, e, dando um salto, vinha em sua direção e estourava-lhe no peito. A principio, tal incidente amedrontou-o por completo, mas, com o tempo foi acostumando-se e pensou até em usar aquela gigantesca gota como uma espécie de despertador, porém o cheiro de tinta o irritava e isso só serviu para aumentar ainda mais sua alucinação, a qual aumentou consideravelmente quando suas gotas de tinta que pegavam fogo passaram a emitir-lhe queimaduras quando o tocavam e chegaram até a incendiar uma casa quando choveram do céu. Os médicos tentaram provar-lhe que não existiam queimaduras nele e que casa alguma fora incendiada, mas seus esforços foram em vão.
Nesses estagio da sua loucura, já seus pais haviam procurado todos os analistas e psicólogos da cidade e perante a capacidade que todos apresentavam, o casal, já idoso, se consumia de tristeza perante a degradação físico-intelectual do querido filho que já negava-se a comer, sentindo cheiro de tinta em todos os alimentos e vendo cor azul para todos os líquidos. E logo, todos os objetos azuis e todas as canetas foram afastadas de sua presença, pois provocavam-lhe crise nervosa. E com o avançar da doença, a vida do rapaz passou a ser uma prisão, pois até mesmo o céu, por ser azul, dava-lhe imediata alergia.
E o caso corria de tal maneira quando ele fugiu do hospital. A família alarmou-se e colocou a policia e detetives particulares a sua procura. E ele, por seu lado, tentava, desesperado, convencer alguém da realidade das tintas azuis. Mas ninguém acreditava n, riam-se dele e chamavam-lhe de louco. Procurou todos os seus melhores amigos, mas esses mesmos fingiam, apenas, por um momento, dar-lhe crédito, para aproximassem, agarrá-lo e levar-lhe de volta ao hospital, o que o obrigava a correr e fugir constantemente. E seu desespero aumentava a proporção que as gotas azuis não acabam. As via por toda parte, até as pocinhas de esgoto ou de água pela rua, passaram-lhe a ser constituídas de tinta azul. E não tardou a surgir, sobre todas as calçadas e asfaltos, uma camada de tinta de uma polegada de profundidade, que servisse como uma espécie de lava-pé. Dirigiu-se então as fabricas de caneta, lembrando-se que fora por causa de uma que tudo começara. E tentou estudar a composição técnica de todas as canetas esferográficas conhecidas para ver se consegui algum resultado. Porém o problema era bem maior, não estava em uma simples caneta. E ele gritou horrorizado. E foi ai que começou a tempestade. Caminhava pelas ruas quando ressoou terrível trovoada e uma tempestade de tintas iniciou-se, uma chuva de gotas azuis. E a tempestade enchia as ruas. E a alucinação o tomou por completo. E ele correu em direção ao colégio, onde tudo começara, na esperança de uma solução, que já quase não julgava possível. E enquanto corria em direção ao seu destino as gotas azuis da chuva batiam-lhe contra o corpo, inundando-o. E, quando alcançou o colégio, a tinta da chuva que inundava as ruas já estava a altura de seu joelho. Entrou então, afobado, no estabelecimento e correu pelos corredores, todo sujo de tinta, até alcançar sua sala de aula. Ao chegar lá encontrou seus pais, detetives, professores e policiais que faziam apelos aos alunos, perguntando se não o haviam visto. Quando o viram chegar, logo o agarraram e sua mãe abraçou-o entre lagrimas. Ele olhou pelas janelas o verdadeiro rio de tinta que se formava nas ruas e que iria inundar a cidade, e gritou:
- A chuva, está enchendo as ruas de tinta, vai inundar tudo, temos que fugir imediatamente, senão, morreremos afogados.
- Mas meu filho_ replicou a mãe com ternura_ não está chovendo, está um dia lindo lá fora.
Mas já ele via tintas azuis jorrarem de todos os lados, entrando pelas janelas, pelas portas, pelo teto, pelas frestas.
- A tinta!_ gritou_ vocês não estão vendo, esta inundando a sala, esta envolvendo todos vocês, vão nos encobri.
E olhou desesperado para os policiais, professores e alunos, olhou para seus pais, olhou para a menina que lhe pedira cola. Todos traziam um olhar de tristeza, de pena infinita, como se mirassem uma pobre criatura miserável, aleijada para o resto de seus dias.
E ele, já com o rio de tinta a altura do pescoço e continuando a subir enquanto o som da tempestade continuava lá fora, tentou dizer alguma coisa, mas calou-se.
E não tardou, quando o rio de tinta encobriu-lhe, a cair estirado no chão, morto.
No mesmo dia, à noite, quando foi feita a autopsia do corpo, constatou-se com assombro que o motivo da morte fora afogamento. E, ao abrir-lhe o estomago para averiguações, descobriu-se grande quantidade de tinta azul que ele havia, inexplicavelmente, engolido.


Wilson Madeira Filho
Niterói, 21-22/06/1978