A idéia de escrever à noite me veio à cabeça porque eu passo o dia pensando e não consigo colocar tudo no papel. O clima da manhã me parece menos inspirador que o clima da noite. Mas noite, muita gente pode pensar, foi feita para dormir. Eu não penso muito assim. Eu já até pensei que se pudesse, ou melhor, conseguisse, dormiria pela manhã e ficaria à noite acordada. Todos os dias.
Repare. Hoje à noite, ouça os barulhos dos carros nas ruas, chegue na janela e veja quantas pessoas estão acordadas assistindo à televisão, tem um cheiro de comida boa sendo feita por alguém nas redondezas (e não na sua casa).O lixeiro provavelmente vai passar tarde e vai assobiar alto. Um neném vai chorar enquanto a mãe prepara a mamadeira… Veja que é à noite que pensamos “cá com nossos botões”, na “morte da bezerra”, nos problemas e nas conquistas, no amor, na família, e no que temos para fazer no dia seguinte. Mas essa noite eu decidi pensar em apenas uma coisa: na noite propriamente dita. Eu estou aqui em casa, sem conseguir dormir. Sem demagogia, penso quantas pessoas estão dormindo mal agora, nas vielas do centro da cidade, em frente às vitrines de lojas de colchão, sem um lençol para se cobrir. Que bom que não está chovendo nem fazendo frio. Mesmo assim, o conforto da noite é estar num lugar agradável para dormir tranqüilo. Uma boa noite de sono tem de ter no mínimo, umas oito horas de duração, certo? Bem, essa noite se eu conseguir dormir a metade disso, estou satisfeita.
Tem gente agora, assim como eu, tentando dormir, mas o sono não vem. Não é fácil desligar a cabeça como a gente desliga um interruptor. Tem dia que não dá. E a essa hora tem gente querendo muito dormir, mas não pode. Imagine como deve ser difícil para o caminhoneiro dirigir numa noite escura, numa estrada longa, com os faróis dos outros carros no rosto. Imagine um vigia de empresa de segurança, sozinho, atento às pessoas que passam, com apenas uma cadeira para se sentar. Eu se fosse caminhoneiro seria bem gordo porque para enfrentar o sono numa viagem longa, talvez comendo eu conseguisse ficar com os olhos abertos. Se eu fosse vigia, estudaria para prova de concurso público. Você acha que alguém vai sair de casa de madrugada, altas horas da noite, para vigiar o vigia? Duvido.
Chato é saber que uma boa noite de sono faz bem à pele. Eu acho que amanhã terei 80 anos… Ah, e por falar em boa noite, fiquei pasma no dia em que soube que ao cumprimentar alguém com um boa noite, esse boa noite tem hífen: boa-noite. Mas tem também um boa noite sem hífen. Calma. Boa noite todos teremos se conseguirmos parar de pensar e dormir. É, a vida nos reserva boas surpresas (sem hífen, claro).
O boa-noite mais famoso, certamente, é o do William Bonner. Já vi Vovó Dina cumprimentá-lo uma vez quando estávamos em Rio das Ostras e aquilo me marcou. Teve gente que riu, mas, na verdade, teve uma reciprocidade naquele desejo sincero, porém distante. Pior é saber que devemos dar um boa-noite para quem está conosco antes de dormir e esquecemos. Mas tem gente tão educada quanto William Bonner por aí. No prédio onde mora minha mãe, o zelador todas as noites cumprimenta os moradores com um sonoro “Bánoite”. É engraçado sim, mas, ao mesmo tempo, eu penso como ele nunca esquece, por motivo algum, de desejar que tenhamos um bom final de dia. É bom desejar isso às pessoas. Tem gente que pode ter um péssimo final de dia, pode ter insônia, um problema cardíaco… e morrer. Cruzes! Esse papo está ficando ruim. É melhor dormir para que nada de terrível possa nos acontecer. Nada de boa-noite, Cinderela. Nem sonhando.
"Quando a borboleta coroou a flor amarela, os lírios, em ângulo reto com seus caules, fizeram uma profunda saudação..." - Guimarães Rosa
sexta-feira, 6 de março de 2009
terça-feira, 3 de março de 2009
.... 33
- Ô Zé, não cumprimenta mais a ex-namorada? Vai cuspir no prato que comeu?
A naturalidade de Claudia. A opressora naturalidade de Claudia, o falar alto, gesticular, o sorriso de 78 dentes, jeito espalhafatoso de se vestir, de puxar conversa com todos, qualquer um, até com o ex-namorado.
- Senta ai e toma um chope! – no pedido, uma ordem.
Zé Pereira sentou, sujeito-homem. E esse anel no dedo, aliança na mão esquerda, casamento: quem seria o Zé Pereira depois do Zé Pereira?
- Está vindo de onde ta indo pra onde? – Claudia de novo, a mulher-citação.
As palavras presas a língua que se recusa a abrir espaço entre os dentes. O que falar, como se portar? Zé Pereira ainda calado. Quantos segundos já teriam se passado desde que sentara e não abrira a boca? O pensamento impedindo a ação, bloqueando a espontaneidade, e ele começou a contar: 28, 29, 30, 31, 32, 33, sem perceber.
- Trinta e três? Está me achando com cara de médica Zé? – Claudia dona da situação, 156 dentes de um duplo sorriso, deboche.
- Não, é... 33 eu disse, não foi? Trinta e três anos esta fazendo o Marcelinho hoje – conseguira remendar o tempo – estou indo lá no aniversario dele daqui a pouco. Vamos lá?
Convidara Claudia para um programa, foi isso? Ato impensado, imprensado contra os azulejos do Novo Capela. E agora a vida era apenas a espera pela resposta, uma espera que se estendia em minutos, meses, quatro, o tempo de separação dos dois, e olhar de Claudia oscilando entre o rosto dele e a porta, será que ela está esperando alguém? E, novamente no rosto dele, no chope, no ultimo gole, 12, 13, 14, 15, 16.. – Zé Pereira de novo contando.
- Mas o aniversario do Marcelinho não é hoje!
- Não é hoje? É sim, não é? – Claudia me domina, ele pensa, Claudia ainda me hipnotiza, e agora era o olhar dele que vacilava entre o rosto dela e a porta, o dedo anular e a parede azulejada, os avisos colados na parede, peça de teatro, aulas de violão, show de samba.
- Mas de que Marcelinho você está falando?
- Mais dois chopes?
- Santo Cícero, providencial mestre de lentes embaçadas, solta dois chopes, ó mestre-prático. O meu sem colarinho que sou sujeito-homem, não gosto dessas frescuras de creme.
- Eu, hein, Zé, que historia é essa de sujeito-homem?
A mudez de Zé Pereira novamente, os lábios secos que não se desgrudavam, falta de saliva, memória de cerveja.
Sujeito-homem. Isso mesmo, pensou, mas não falou, sujeito-homem, sim, mais sujeito-homem que esse ai do anel. Pensou, mas não falou.
- Você está estranho, Zé! – uma afirmação, Claudia só falava no imperativo. Se Claudia falasse por escrito colocaria três exclamações ao final de cada frase.
- Mas que Marcelinho é esse, Zé? Não é o meu Marcelinho, é? – mesmo as interrogações de Claudia eram exclamações.
A porta do Nova Capela se abriu e um sorriso veio andando em direção a mesa onde os dois estavam. Um homem, um homem no diminutivo enlaçou o pescoço de Claudia e estalou um beijo no cantinho do lábio.
Marcelinho.
A naturalidade de Claudia. A opressora naturalidade de Claudia, o falar alto, gesticular, o sorriso de 78 dentes, jeito espalhafatoso de se vestir, de puxar conversa com todos, qualquer um, até com o ex-namorado.
- Senta ai e toma um chope! – no pedido, uma ordem.
Zé Pereira sentou, sujeito-homem. E esse anel no dedo, aliança na mão esquerda, casamento: quem seria o Zé Pereira depois do Zé Pereira?
- Está vindo de onde ta indo pra onde? – Claudia de novo, a mulher-citação.
As palavras presas a língua que se recusa a abrir espaço entre os dentes. O que falar, como se portar? Zé Pereira ainda calado. Quantos segundos já teriam se passado desde que sentara e não abrira a boca? O pensamento impedindo a ação, bloqueando a espontaneidade, e ele começou a contar: 28, 29, 30, 31, 32, 33, sem perceber.
- Trinta e três? Está me achando com cara de médica Zé? – Claudia dona da situação, 156 dentes de um duplo sorriso, deboche.
- Não, é... 33 eu disse, não foi? Trinta e três anos esta fazendo o Marcelinho hoje – conseguira remendar o tempo – estou indo lá no aniversario dele daqui a pouco. Vamos lá?
Convidara Claudia para um programa, foi isso? Ato impensado, imprensado contra os azulejos do Novo Capela. E agora a vida era apenas a espera pela resposta, uma espera que se estendia em minutos, meses, quatro, o tempo de separação dos dois, e olhar de Claudia oscilando entre o rosto dele e a porta, será que ela está esperando alguém? E, novamente no rosto dele, no chope, no ultimo gole, 12, 13, 14, 15, 16.. – Zé Pereira de novo contando.
- Mas o aniversario do Marcelinho não é hoje!
- Não é hoje? É sim, não é? – Claudia me domina, ele pensa, Claudia ainda me hipnotiza, e agora era o olhar dele que vacilava entre o rosto dela e a porta, o dedo anular e a parede azulejada, os avisos colados na parede, peça de teatro, aulas de violão, show de samba.
- Mas de que Marcelinho você está falando?
- Mais dois chopes?
- Santo Cícero, providencial mestre de lentes embaçadas, solta dois chopes, ó mestre-prático. O meu sem colarinho que sou sujeito-homem, não gosto dessas frescuras de creme.
- Eu, hein, Zé, que historia é essa de sujeito-homem?
A mudez de Zé Pereira novamente, os lábios secos que não se desgrudavam, falta de saliva, memória de cerveja.
Sujeito-homem. Isso mesmo, pensou, mas não falou, sujeito-homem, sim, mais sujeito-homem que esse ai do anel. Pensou, mas não falou.
- Você está estranho, Zé! – uma afirmação, Claudia só falava no imperativo. Se Claudia falasse por escrito colocaria três exclamações ao final de cada frase.
- Mas que Marcelinho é esse, Zé? Não é o meu Marcelinho, é? – mesmo as interrogações de Claudia eram exclamações.
A porta do Nova Capela se abriu e um sorriso veio andando em direção a mesa onde os dois estavam. Um homem, um homem no diminutivo enlaçou o pescoço de Claudia e estalou um beijo no cantinho do lábio.
Marcelinho.
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