domingo, 20 de setembro de 2009

Carta 98

Passei outro dia pela Ponte Nova com um de meus amigos; encontrei um conhecido que, segundo me disse, era um geômetra; não tinha nada que não o fizesse parecer, pois estava num devaneio profundo; foi preciso que meu amigo o puxasse repetidas vezes pela manga e o sacudisse para fazê-lo descer até ele, de tal modo estava ocupado com uma curva geométrica que o atormentava havia mais oito dias. Os dois trocaram muitas gentilezas e revelaram um ao outro algumas notícias literárias. Essa conversa os levou até a porta de um café, no qual entrei junto com eles. Observei que nosso geômetra foi recebido por todos com solicitude e que os garçons do café faziam muito mais caso dele que de dois mosqueteiros sentados num canto. Para ele, parecia-lhe estar num local agradável, pois desenrugou um pouco seu rosto e se pôs a rir, como se não tivesse a menor familiaridade com geometria. Entretanto, seu espírito regular tosava tudo o que se dizia na conversa. Parecia aquele que, num jardim, cortava com sua espada a ponta das flores que se sobressaíssem acima das outras. Mártir de sua exatidão, ficava ofendido com uma tirada, como uma vista delicada é ofendida por uma luz muito intensa. Nada lhe era indiferente, contanto que fosse verdade. Por isso a conversa era singular. Ele havia chegado nesse mesmo dia do campo com um homem que havia visto um castelo soberbo e jardins magníficos. Ele, no entanto, só havia visto um edifício de sessenta pés de comprimento por trinta e cinco de largura e um pequeno bosque sem proporções definidas de dez jeiras; teria gostado muito que as regras das perspectivas tivessem sido de tal forma observadas que as alamedas fossem em todo o âmbito da mesma largura; teria dado para isso um método infálivel. Pareceu muito contente com um relógio de sol que havia divisado, de uma estrutura muito singular; mas ficou enraivecido com um sábio, que estava perto dele, e infelizmente lhe perguntou se esse relógio de sol marcava as horas babilônicas. Um contador de histórias falou do bombardeio do castelo de Fontarábia, ele imediatamente nos deus propriedades da linhas que as bombas haviam descrito no ar e, encantado por saber isso, quis ignorar inteiramente o sucesso delas. Um homem se queixava por ter sido arruinado no inverno pelas inundações; o geômetra então disse:" O que dizer me agrada muito, pois vejo que não me enganei na observação que fiz, ou seja, que caíram na terra pelo menos duas polegadas de água a mais que no ano passado". Logo a seguir, ele saiu e nós os seguimos. Como andasse muito depressa e não cuidasse de olhar na frente dele, deu um encontrão em cheio em outro homem; eles se chocaram com força e, com isso, cada um espirrou para um lado, a razão recíproca de sua velocidade e de suas massas. Logo que se recuperaram um pouco de seu atordoamento, esse homem, levando a mão à testa, disse ao geômetra: "Fico feliz pelo encontrão, pois tenho uma grande novidade para te contar: acabo de dar ao público meu Horácio"
- Como? - diz o geômetra - Há dois mil anos que sua obra é conhecida.
- Não me entendes - retrucou o outro - É uma tradução desse antigo autor, que acabo de publicar. Há vinte anos que me ocupo com traduções.
- Como, senhor! - diz o geômetra - Há vinte vinte anos que não pensas? Falas pelos outros e eles pensam por ti?
- Senhor - diz o sábio - acreditas que não prestei um grande serviço ao público ao lhe tornar a leitura dos bons autores familiares?
- Não digo isso de modo algum. Estimo como qualquer outro os sublimes gênios que traduzes, mas tu não se assemelhas a eles, pois se continuares traduzindo sempre, ninguém vai de traduzir.
- As traduções são como essas moedas de cobre que têm na realidade o mesmo valor que uma moeda de ouro e que têm até mesmo um uso bem maior entre o povo, mas são sempre fracas e de má qualidade.
- Queres, segundos dizer, fazer renascer entre nós esses ilustres mortos e acredito que lhe darás até um corpo, mas não lhes devolverás a vida, sempre vai faltar um espírito para reanimá-los. Por que não te aplicas antes à pesquisa de tantas belas verdades que um cálculo fácil nos leva a descobrir todos os dias?"
Depois desse pequeno conselho, eles se separaram, e acredito, muito descontentes um com relação ao outro.


Cartas Persas - Charles de Montesquieu